quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Estamos grávidos! (by Mafalda Frade)

Enquanto escrevia o livro fui descobrindo que estava a contar uma história com uma forte mensagem de clareza e esperança. A quem, como eu, se sente tentado a olhar para o Mundo e a achar que somos demasiado condicionados pelo que tem que ser, pela carreira obrigatória, por tudo o que os outros esperam de nós, fui dizendo que há mais do que os olhos alcançam!

O que hoje vos trago, porém, é um texto que ultrapassa tudo o que fui dizendo no livro. 
Escrito por uma "menina" de seu nome Mafalda Frade, minha prima, é provavelmente um dos mais fantásticos que alguma vez li. 
Partilho-o convosco porque (como lhe disse a ela) o mundo anda louco, mas ela (eles!) souberam bem escolher outra via.
Mafalda e Ricardo... os meus mais sinceros parabéns!




Estamos ‘grávidos’.
Pois é, vem aí uma nova Maria. Que traz consigo já, nas 25 semanas de vida que leva, algumas histórias para contar. A maior delas partilha-a com a mana mais velha, ainda que não saibamos se com o mesmo desfecho. Começa sensivelmente a meio de julho, com o chamado rastreio pré-natal, teste que revela as probabilidades de o bebé ter trissomia 21, 13 ou 18, permitindo aos pais, caso queiram ter certezas, realizar a amniocentese (para decidir o que fazer, ou seja, basicamente, abortar ou não). É um exame invasivo que envolve riscos, como o de aborto espontâneo (cerca de 1% das crianças morre) ou de infeções uterinas. 

Tal como aconteceu com a Maria Carolina, o teste indicou uma probabilidade maior que o normal de esta nossa filhota ter síndrome de Down. Quando da gravidez da Carolina, e porque tínhamos decidido, ainda antes de casar, que aceitaríamos os filhos que tivéssemos como eles viessem, decidimos não fazer a amniocentese porque não queríamos colocá-la em risco quando já tínhamos decidido que a queríamos nos braços fosse deficiente ou não (o que seria de mim hoje se a Carolina não tivesse sobrevivido ao exame?). No caso dela, nasceu sem qualquer síndrome.

Confrontados agora com o que já tínhamos vivido, voltámos a tomar a mesma decisão: não faríamos a amniocentese porque não queríamos pôr a nossa bebé em risco. Não precisamos de saber como ela é. Queremo-la como for. E sentimo-nos muito tranquilos na nossa decisão. Temos vivido estas semanas sem quaisquer dramas a esse nível, tranquilos e a AMAR já imensamente esta filha que trago dentro.

Mas há uma coisa que me inquieta: é ter ido a duas consultas médicas em que os médicos, porque recusei a amniocentese, olharam para mim como se eu fosse uma anormal, numa incredulidade que me espantou. Como se aceitar um filho mesmo com a probabilidade de ele ser deficiente fosse próprio de uma pessoa que não bate bem da bola. Como se amar um filho acima de tudo fosse estranho. 

É que, percebi, a lógica de muitos médicos é que se deve fazer a amniocentese para ter a certeza e poder abortar, se a bebé for deficiente (descobri que cerca de 80% das mulheres que têm um filho com síndrome de Down abortam). E muitas mães, ao recusarem, são quase coagidas por eles para fazerem o teste, soube depois pelos testemunhos de algumas amigas e conhecidas, que se viram aflitas para manterem a sua posição de recusa.

No meu caso, tive a sorte de ser tão taxativa na primeira consulta que a médica não soube muito como insistir. Mas olhava para mim de tal forma incrédula que confesso que me senti como se estivesse numa fábrica de bebés, em frente a uma passadeira rolante, a vê-los sumirem-se numa máquina e a saírem de lá com o destino traçado: ‘Não tem defeito, siga. Tem defeito, lixo.’ E uma enorme pilha de bebés amontoados atrás…
Na segunda consulta, a médica só nos cumprimentou e o diálogo que se seguiu foi este:
‘Já sei…’ (a olhar para nós num misto de constrangimento e curiosidade)
‘Já sabe o quê, Dra?’
‘Já sei… Do teste…’
‘Ah, pois, o teste. Nós não quisemos fazer a amniocentese.’
‘Pois, também já sei…’ (continuando a olhar para nós num misto de constrangimento e curiosidade)
E eu a sentir-me de novo na fábrica de bebés… 


Parece que, nesta sociedade em que vivemos, tudo o que possa ter ‘defeito’ é para descartar como se não tivesse préstimo nenhum. A eugenia no seu melhor, dizia-me uma amiga depois. E soube também que terei tido azar nos médicos que me calharam, porque muitos não pensam assim. Mas que os há, há.

Enfim, fiquei com a sensação de que, se esta bebé tiver esta síndrome, a grande luta não vai ser educá-la, nem lidar com os problemas de saúde que ela possa vir a ter. A grande luta vai ser lidar com o preconceito, com a forma como a sociedade reage perante crianças diferentes. 

Quando leio comentários que dizem que não vale a pena trazer ao mundo uma criança assim porque não vai viver com dignidade, vai andar cheia de doenças e lhe vão chamar ‘atrasada’ a vida toda, fico chocada. Chocada. Porque a dignidade de uma pessoa depende, em muito, da forma como é tratada pelos demais. Porque as doenças tratam-se, minimizam-se e todos as temos. Porque muitos de nós tivemos de lidar a vida toda com gente a chamar-lhe nomes (a começar por mim, que ser inteligente acarretou esse tipo de dissabores) e não é por isso que não estamos cá, inteiros e de pé.

Ter síndrome de Down não é uma sentença de morte. Eu conheço um atleta paraolímpico com esta síndrome (quantos de nós o bateríamos numa piscina?) e outros que trabalham e se sustentam. A esperança média de vida não é muito alta (40 a 50 anos), mas não deixam de poder chegar à idade adulta e de eventualmente poderem contribuir para a sociedade em que se inserem e que tantas vezes os terá maltratado.
A probabilidade de a minha menina ter síndrome de Down não me assusta. Terá uma mamã e um papá que farão o melhor por ela. E uma Família inteira por trás que nos apoia i-n-c-o-n-d-i-c-i-o-n-a-l-m-e-n-t-e na nossa decisão, como já nos apoiou quando enfrentámos esta situação com a Carolina. Nos dizeres de uma mamã com uma filha com Down, temos em nós o ‘cromossoma do Amor’.

A minha amiga Ana um dia, a propósito disto (querida Ana, que tens palavras que criam raízes fundas no meu coração), disse-me: “É bom ver que tu não tens medo de outro tipo de perfeição”. E não tenho mesmo. Nem tenho a pretensão nem a arrogância de achar que a perfeição do meu corpo é melhor que a Perfeição do corpo da minha menina. Sei só que a quero muito cá fora, nos meus braços, venha como vier. E o futuro será escrito no seio de uma Família que a ama como ela é.

Aos meus amigos gostava de pedir alguma coisas. Se ela tiver síndrome de Down, não nos lancem olhares de comiseração nem de constrangimento. Não chorem, não nos lamentem, não nos critiquem por a querermos independentemente de tudo. Não façam deste assunto tabu, evitando falar dele connosco, tirar dúvidas, ajudar. Antes, alegrem-se porque somos abençoados com uma dádiva que muitos querem e não têm: ter filhos. E alegrem-se porque a nossa menina será imensamente amada. E, no que depender de nós, será imensamente feliz. O que pode uma pessoa mais querer desta vida?

Mafalda Frade


domingo, 12 de outubro de 2014

Há uma primeira vez para tudo… até para editar um livro! (by Paula Lobo)

Concentradíssima, a editar o livro!
10 de Julho de 2013. Este podia ter sido um dia como outro qualquer. E, em boa verdade, o dia em si, até foi. 

À data, eu trabalhava como Gestora de Marketing e Comunicação da Delegação de Braga da Cruz Vermelha Portuguesa, instituição para a qual reverteram parte das receitas do Ignite realizado na Cidade dos Arcebispos. Por esse motivo – profissional – aliado ao meu interesse pessoal por este tipo de eventos, fui até ao GNRation nesse final de tarde.  

Depois de algumas apresentações interessantíssimas (e outras nem tanto, verdade seja dita), surgiu o Ricardo Frade. Um tipo com ar tresloucado que sobe ao palco para, com um entusiasmo notável, contar que tinha vindo da Suécia para Portugal sem dinheiro. Lembro-me de rir, e de comentar com o Coutinho (um amigo que me acompanhou a este evento), aquando do quinto slide, que “este gajo” era “maluco!”. A terminar a sua intervenção, o Ricardo diz que vai iniciar a fase de escrita do livro, e que se alguém na sala estivesse disposto a ajudá-lo na tarefa de edição, era muito bem-vindo. E depois diz algo como “ali está uma menina! Já vamos conversar!”. A “menina” era eu. Eu tinha erguido o braço, sem pensar. Quando me apercebi dos rostos sorridentes voltados para mim entrei em pânico, baixei o braço e olhei, desesperada para o meu amigo. “Eu nunca editei um livro!”, disse-lhe. E ele, com a sua racionalidade característica, acalmou-me até chegar o momento de falar com o Ricardo.

Só mesmo depois do término de todas as apresentações é que conversámos, o que me deu tempo mais do que suficiente para ensaiar o discurso: “olhe, antes de mais parabéns pela apresentação, e pelo projecto todo, que é interessantíssimo! Espero que tenha muito sucesso, mas eu não devia ter erguido o braço. Não tenho a experiência e o know how de que precisa”. Quem conhece o Ricardo a esta hora está a rir e a pensar “oh rapariga a quem tu foste dizer isso!”. O Ricardo respondeu-me “então mas qual é o problema?”. “Nunca editei um livro”, confessei. “E depois? Eu também nunca tinha vindo da Suécia para Portugal sem dinheiro!”. Fitei-o, atónita, e completamente desarmada. “Diz-me lá, tens sensibilidade para isto, não tens? Eu preciso de alguém que perceba alguma coisa de edição de texto!”. “Bem, eu percebo alguma coisa. Quanto mais não seja porque faz parte da minha formação académica…”. “Que é?”, Inquiriu-me. “Comunicação. Escrevo textos com regularidade/facilidade. Já editei quase todo o tipo de textos. Jornais, revistas, newsletters… mas nunca um livro inteiro!”. “Boa! Vai ser uma grande experiência então”.
E está a ser. MESMO!
Paula Lobo, orgulhosamente ‘editora’.